Disciplina - Ciências

Ciências

29/03/2019

O peso das emoções sobre o coração

Estudo com 15 mil pessoas no Brasil aponta associação entre problemas psiquiátricos e doenças cardiovasculares

Depois de avaliarem os hábitos de vida e a saúde de 15 mil moradores de seis capitais brasileiras durante 10 anos, entre 2008 e 2018, equipes do Estudo Longitudinal da Saúde do Adulto (Elsa-Brasil) construíram um retrato do surgimento e da evolução de algumas doenças crônicas no Brasil e das possíveis interações entre elas. Com base em entrevistas e exames dos participantes do estudo, médicos e pesquisadores identificaram nessa amostra da população brasileira uma associação conhecida há pelo menos 10 anos em outros países: a de dois tipos de distúrbios psiquiátricos, a depressão e a ansiedade, com o maior risco de doenças cardiovasculares, infarto e acidente vascular cerebral. “Precisamos dar mais atenção aos distúrbios mentais, que estão sendo pouco tratados e podem interferir em outras doenças”, ressalta o médico epidemiologista Paulo Lotufo, coordenador do Centro de Pesquisa Clínica e Epidemiológica do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (HU-USP) e do Elsa-Brasil.

Os distúrbios psiquiátricos podem se manifestar em quem tem apenas os sinais mais leves de eventuais problemas cardíacos, de acordo com um artigo de janeiro de 2019 na International Journal of Cardiology. A médica Claudia Szlejf, pesquisadora do HU-USP, examinou os dados sobre 13.743 participantes do Elsa-Brasil com idade média de 51,9 anos, sem doença cardíaca diagnosticada, avaliados por meio do índice de massa corporal, hipertensão arterial, diabetes, nível de colesterol, tabagismo, atividade física e dieta. Metade dos participantes (54,1%) enquadrou-se na categoria de saúde cardiovascular ruim, 38,1% em intermediária e 7,8% em boa. Um em cada quatro participantes tinha algum tipo de distúrbio psiquiátrico, mais comum em mulheres (33,6%) do que em homens (18,4%). Após serem eliminados os efeitos de idade, sexo, raça e consumo de álcool, a depressão foi duas vezes mais frequente em quem tinha saúde cardiovascular intermediária e duas vezes e meia em quem tinha saúde cardiovascular ruim, em comparação com quem tinha saúde ótima. Já com o transtorno da ansiedade, a frequência foi 20% maior nas pessoas com saúde intermediária e 50% maior nas com saúde ruim. “Os hábitos de vida, como o sedentarismo e a alimentação inadequada, parecem ser uma das chaves dos transtornos psiquiátricos e das doenças cardiovasculares, que acabam se alimentando reciprocamente”, diz a médica Isabela Benseñor, pesquisadora do HU-USP, vice-coordenadora do Elsa-Brasil e coautora desse estudo. Em alguns casos, como ressaltam os pesquisadores, é difícil estabelecer o que aparece primeiro, se o distúrbio psiquiátrico ou os problemas do coração.

Em 2019, a análise das informações deve continuar para, entre outros objetivos, verificar se a depressão poderia efetivamente anteceder as doenças coronarianas, o infarto e o acidente vascular cerebral, embora os distúrbios psiquiátricos possam também surgir depois do primeiro infarto. “Quem tem depressão tem maior risco de doenças cardiovasculares”, observa o psiquiatra Renério Fraguas Junior, professor do Departamento e do Instituto de Psiquiatria e do HU-USP, que não participa do Elsa-Brasil. Segundo ele, a depressão causa mudanças no organismo – o aumento dos níveis do hormônio cortisol, do estado inflamatório, da agregação plaquetária, entre outros – que favorecem a formação da aterosclerose, o processo básico que causa a obstrução das artérias. “Melhorando a depressão, cai o risco de doenças do coração”, diz Fraguas.

Uso de antidepressivos

Um artigo publicado em 2014 na American Journal of Psychiatry mostrou que os participantes do Elsa-Brasil que tomavam antidepressivos apresentavam aumento na frequência cardíaca, medida por meio de um eletrocardiograma durante 10 minutos, o que indicava maior probabilidade de sofrerem infarto ou acidente vascular cerebral em relação aos pacientes que não faziam uso de medicamentos. Entre os participantes do Elsa-Brasil, 6,9% tomavam antidepressivos, de acordo com um artigo de 2013 na Journal of Affective Disorders. Esse estudo indicou que, apesar dos riscos, o uso de antidepressivos estava abaixo do recomendável principalmente entre homens. Entre os que se medicavam, apenas 14% dos participantes (homens e mulheres) com transtorno de ansiedade generalizada e 16,5% com depressão severa se valiam desse tipo de medicação. “O tratamento contra depressão, em geral, ainda não é abrangente como deveria ser”, acrescenta Lotufo.

A um custo de cerca de R$ 65 milhões dos ministérios da Saúde e da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, com apoio de fundações estaduais como a FAPESP (R$ 1,4 milhão distribuído em sete projetos de pesquisa), o Elsa-Brasil reuniu cerca de 50 pesquisadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Bahia, Minas Gerais e Rio Grande do Sul, que coordenaram os exames de 15.105 funcionários ativos ou aposentados de instituições públicas com idade entre 35 e 74 anos. Se, por um lado, esse grupo não representa a população brasileira, por outro pode ser acompanhado ao longo de anos, já que funcionários públicos têm emprego estável e podem ser encontrados facilmente. Em outros estudos desse tipo os pesquisadores relatam maior dificuldade em achar os participantes, por mudança de emprego e residência.

As amostras de sangue dos participantes do Elsa-Brasil foram colhidas em três períodos – de 2008 a 2010, de 2012 a 2014 e de 2016 a 2018 –, analisadas ou armazenadas em 11 tanques com nitrogênio líquido. Entre os dois primeiros períodos de testes, a proporção de pessoas com hipertensão passou de 34,8% para 40,9%. A maioria (76,8%) tomava medicações anti-hipertensivas, mas um em cada cinco não sabia que era hipertenso, convergindo com outros levantamentos feitos no país. O Elsa-Brasil também identificou hipertensão resistente, refratária a pelo menos quatro medicamentos, em 11% dos participantes que tinham pressão alta e em 3% de toda a amostra. Esses números sinalizam a necessidade de implementar programas mais rigorosos de acompanhamento desse distúrbio, de acordo com Lotufo. Uma equipe do Instituto do Coração (InCor) da USP registrou uma taxa idêntica (11,7%) de hipertensão resistente em um estudo com 1.597 pessoas com hipertensão examinadas em 26 centros de pesquisa no país, conforme artigo de 2018 na revista científica Hypertension.

Sobrepeso crescente

Em uma década, a proporção de pessoas com diabetes que participaram do Elsa-Brasil também apresentou um leve aumento, de 16,6% para 19,1%. Os participantes com até 55 anos foram os que mais ganharam peso, em média 1 quilograma (kg) por ano de 2008 a 2014. Dez anos depois, dois em cada três apresentaram sobrepeso ou obesidade e quase metade (44%) tinha colesterol acima dos níveis recomendados. Desde o começo da pesquisa, 540 participantes morreram, principalmente de câncer (40%) e de doenças cardiovasculares (30%), além de causas externas, como acidentes de trânsito, homicídios e suicídios, e doenças respiratórias, renais, gastrointestinais e do sistema nervoso. A taxa de 3,5 mortes por ano a cada grupo de mil pessoas foi quase metade da apresentada pela população brasileira (6,6 por mil). Segundo Lotufo, os participantes do Elsa-Brasil, por serem funcionários públicos com acesso a serviços de saúde oferecidos pelas próprias instituições em que trabalham, têm uma saúde melhor que a da população em geral no Brasil.

Em agosto de 2018, os coordenadores do Elsa-Brasil começaram a trabalhar com as equipes técnicas do Ministério da Saúde para usar os resultados das pesquisas em políticas públicas, voltadas inicialmente à melhoria da alimentação dos brasileiros. Um dos estudos publicados em 2018, na Public Health Nutrition, comparou a dieta de três grupos, o primeiro de pessoas nascidas entre 1934 e 1945, o segundo entre 1946 e 1964 e o terceiro entre 1965 e 1975. “O que mais nos assustou é que a geração mais nova está consumindo mais alimentos ultraprocessados, refrigerantes, doces que as outras gerações”, comenta a nutricionista e epidemiologista Sheila Alvim, da Universidade Federal da Bahia e coordenadora do Elsa-Brasil em Salvador. Alguns estudos atribuem ao consumo excessivo de alimentos ultraprocessados um papel importante no aumento do risco de desenvolver obesidade e diabetes, tema alvo de polêmicas na área de saúde (ver Pesquisa FAPESP nº 265).

Nos próximos meses, segundo Lotufo, deve sair uma publicação com os resumos em português dos quase 220 artigos científicos, publicados desde 2012, com o propósito de ampliar o alcance dos achados do Elsa-Brasil. A quarta etapa de exames dos participantes do estudo deve começar em 2021.


Esta notícia foi publicada na Edição 277 de março de 2019 da revistapesquisa.fapesp.br. Todas as informações são de responsabilidade do autor.

Recomendar esta notícia via e-mail:

Campos com (*) são obrigatórios.